Recordações em Bytes

 
Com um HD externo cheio velharias, eu voltei ao passado

A Internet só ganhou o mundo, ou a maior parte da população mundial, com o barateamento da conexão e a popularização do smartphone. Esses dois eventos são relativamente recentes, o que significa que muita gente não estava aqui quando as conexões eram mais lentas, redes sociais não existiam e nuvem ainda era apenas um fenômeno meteorológico. É um dos que passaram por essa fase tenebrosa? Então faço-lhe um questionamento: quais arquivos daquela época você ainda tem aí, guardados e acessíveis hoje?

Vivemos tempos estranhos em vários sentidos. A relação que temos com o digital, embora não pareça à primeira vista, é um desses. Se não acredita em mim, ouça Vint Cerf, um dos criadores da Internet. Ele recomendou a impressão das nossas fotos para não ficarmos à mercê de uma “Idade das Trevas Digital” motivada pela perda de arquivos decorrente da obsolescência de hardware e software.

O alerta de Cerf se deve ao fato de que é fácil, mergulhado na Internet, perdermos a noção do quão frágeis são os serviços, as ferramentas e as soluções a quem confiamos pedaços consideráveis de nós mesmos. A nuvem é onipresente e ininterrupta, e com empresas gigantes como Microsoft, Facebook, Google e Apple, talvez seja difícil imaginar um cenário diferente do que é tido como “normal”. Tal incerteza suscita alguns questionamentos. Algum dia os meus arquivos na nuvem sumirão? Perderei o acesso do dia para a noite a muita coisa que me importa, de documentos profissionais a lembranças íntimas, insubstituíveis?

As respostas são “sim”. E não é uma aposta, é uma conclusão. Porque… bem, já aconteceu no passado recente. Desde que o Orkut fechou suas portas recebo, vez ou outra, e-mails de pessoas que chegam ao Manual do Usuário por este post implorando por uma forma de acessar a finada rede do Google a fim de reaver fotos dos filhos. “Ah, mas usar o Orkut para isso?” Sim, soa um pouco ingênuo, mas a lógica vale para Flickr, Instagram e Facebook. Se duvida, peguemos um exemplo mais “correto”: o Everpix, tido por muitos como o melhor serviço de backup e recuperação de fotos. Ele fechou as portas porque não conseguia se pagar.

MegaUpload, RapidShare e tantos outros drives virtuais que prometiam guardar com segurança os nossos arquivos são, hoje, notas de rodapé em entradas da Wikipédia — ao menos enquanto a Wikipédia existir. O Google, que um dia se dispôs a registrar a história da web e digitalizar todos os livros publicados pela humanidade, jogou a toalha porque isso não dá dinheiro. Aquele app bacana que você usa como diário é lindo, fácil e acessível hoje. Daqui a 20 anos, quando o único desenvolvedor se cansar dele ou morrer, ou a Apple fizer alguma mudança maluca no iOS ou, ainda, o mercado virar de cabeça para baixo e tornar smartphones obsoletos em prol de relógios super inteligentes capazes de ler pensamentos, o conteúdo dele será acessível? Talvez sim, mas não conte com isso.

Nossos tesouros digitalizados também estão constantemente ameaçados pela evolução do hardware. Disquetes (a versão física daquele botão de “Salvar” que alguns apps ainda têm) nunca foram confiáveis, mas eram as mídias móveis mais baratas e disponíveis em algum ponto do passado. Depois vieram os CDs, e em seguida os DVDs. Você, se pegou essa época, deve ter gravado um bocado deles com filmes, músicas e jogos piratas, além de alguns backups de fotos e arquivos. Quantos daqueles discos super sensíveis ainda funcionam? E o disquete, há quanto tempo você não usa um, ou mesmo vê um drive funcional sem ser aquele vídeo em que vários deles tocam a Marcha Imperial? No meu caso, nem leitora de CD/DVD eu tenho mais. As pilhas de discos, antes tão valiosas, hoje estão amontoadas e esquecidas em alguma caixa fechada na casa dos meus pais.

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Foto de um modelo similar ao do meu HD externo.
Foto: Tolbxela/Flickr.

Kevin Roose (não confundir com o Rose), repórter do Fusion, em uma dessas expedições que a gente faz vez ou outra pelo passado encontrou um disco rígido criptografado de 2005. Ele gastou uma nota em processamento da Amazon e 11 dias (!) para quebrar a senha e encontrar lembranças de dez anos atrás. Essa história me motivou a fazer um exercício similar: procurar os meus arquivos mais antigos que ainda tenho guardados.

Meu primeiro computador, na verdade o “computador da família”, chegou em casa há quase vinte anos, em 1996. Em momento algum, ao ter essa ideia de resgatar meu passado digital, tive a esperança de encontrar fotos, textos ou qualquer coisa desse ano e dos seguintes. Sem Internet, que só entrou em nossa casa no começo dos anos 2000, o PC era uma central de emuladores e um ajudante para trabalhos escolares, com Word e, na falta da Wikipédia, um CD da Barsa.

Mesmo depois, do período em que ganhei acesso à Internet, não esperava encontrar nada relevante. Câmeras digitais começariam a aparecer nas mãos dos meus amigos entre 2003 e 2005 (a primeira da família foi comprada em 2005) e… bem, mesmo que houvesse algo digno de ser guardado produzido naqueles primeiros dias de computador conectado, o ambiente era muito hostil para que esse conteúdo sobrevivesse. Impressionado com artigos e fóruns sobre Linux, o mundo de versões do Windows ao alcance de algumas madrugadas de download e à fragilidade da computação pessoal no período, gastava mais tempo destruindo e reinstalando o sistema e mexendo nele do que usando o computador para qualquer outra coisa mais útil.

Minhas fotos, que datam de 2003, estão salvas na nuvem e em um HD externo. Nesse, um modelo bem pequeno da Samsung com capacidade de 320 GB comprado em 2011, também guardo outros tipos de arquivos. A casa dos meus pais já teve vários PCs, entre modelos baratinhos comprados no varejo e restos de computadores meus unidos para formar frankensteins com bom desempenho, então as chances de encontrar algo muito antigo no que atualmente está lá, um Athlon X2 6000+ com… bom, sei lá o que ele tem mais, são mínimas.

O backup do meu HD era, então, a única esperança de encontrar resquícios do meu eu de dez anos atrás. Ele não está criptografado, logo não passei pelo perrengue custoso e demorado de Roose. Para voltar ao passado, bastou conectá-lo a uma porta USB do meu notebook.

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Pintura minha.

Muita gente não sabe, mas o Windows Explorer tem uma sintaxe de pesquisa bem versátil. Logo de cara, queria saber qual era o arquivo mais antigo que ainda possuía. Naquele campo de pesquisa, no canto superior direito da janela, digitei “data:1999” a fim de encontrar arquivos criados ou modificados em 19991.

Nada.

Fui aumentando o ano e os primeiros resultados surgiram em 2001. Era apenas uma imagem, de nome iw_winxp.jpg. Ao abri-la, deparei-me com o logo do Windows XP. Clique nela com o botão direito e mandei o Windows abrir outra janela com a pasta de destino, ou seja, o local no HD em que esse arquivo está. Ainda bem que eu tinha apertado bem o cinto antes porque a viagem começou nesse exato momento.

Caí em uma pasta cheia de imagens. Encontrei os logos dos demais Windows; os do Guia do Hardware, um fórum que frequentava bastante no começo dos anos 2000; alguns prints do Windows e do Kazaa na gloriosa resolução de 1024×768; um Tux, o mascote do Linux; fotos promocionais do leitor e do gravador de CDs que eu tinha na época (?) e, provavelmente por ter achado legal, um banner todo em japonês de um computador feito de papelão. As minhas primeiras memórias digitais que resistiram às intempéries do período são essas bobagens.

Imagens de computador nonsense.

Mistério resolvido, fui dar uma olhada na árvore de pastas dentro da “Backup”, a mais promissora. Entrei na “Documentos”. Achei currículos meus e de parentes e amigos que vinham em casa pedir para eu redigi-los, e-books piratas que jamais li, uns dez planejamentos financeiros feitos no Excel e largados pouco tempo depois de começados, quase todas as versões estáticas, pré-WordPress de um antigo site meu, o WinAjuda, e alguns trabalhos para sites e revistas que fiz até o final dos anos 2000.

Ainda lá, encontrei o arquivo mais antigo que não era uma imagem, um tal de uin.txt. UIN, para os mais novos, é a abreviação de Universal Identification Number, o ambicioso nome que o ICQ dava ao código que você precisava decorar e passar aos amigos para que eles te adicionassem no programa de bate-papo. (A vida era difícil, como você pode ver.) O meu, um UIN pouco valorizado de nove dígitos, era tão grande que achei conveniente salvá-lo em um arquivo de texto. E assim o fiz, no dia 24 de setembro de 2002, à 00h05, via conexão discada, presumo.

Meu UIN, número de identificação do ICQ.

Avançando, achei rascunhos de cartões que escrevi para minha mãe e para ex-namoradas. Não sei se isso é normal ou não, mas sempre tive o hábito de rascunhar no teclado. É mais fácil corrigir, alterar e editar as palavras com o auxílio das teclas Backspace e Delete do que riscar uma folha de papel inteira. Logo ao lado, alguns poemas e crônicas engraçadinhas que hoje viraram vídeos que poluem o feed do Facebook, mas que na época eram novidade e, olha, eu preciso salvar isto aqui. O Manual do IRCop da BrasIRC, publicado em 27 de junho de 1999. Um arquivo de senhas (!) igual ao que a Sony Pictures tinha, mas o meu está protegido por uma senha-mestra que não lembro mais e que provavelmente jamais recuperarei.

Também achei, compactado, alguns trabalhos da época do Ensino Médio. Ali tem coisa mais antiga que o uin.txt, mas… quem se importa? E, quando menos esperava, encontrei algo que me fez ir mais fundo na viagem: registros de conversas do MSN Messenger.

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Um Wink enviado pelo MSN Messenger.

Os primeiros são de julho de 2004. Nessa época eu estava no primeiro ano da faculdade de Direito, o WinAjuda ainda era apenas um hobbie e estava há poucos meses de terminar com minha primeira namorada. Os reflexos virtuais em texto dessa transição amorosa estão ali: nas primeiras conversas falávamos sobre amenidades, meu site, os detalhes de uma ida ao cinema, uma pequena discussão sobre um motivo bobo qualquer. Dali a dois meses o clima era bem diferente, mais tenso. Mágoa de um lado, descaso do outro. (É meio tarde, mas me desculpe mesmo assim.)

Era um plugin, o Messenger Plus, que salvava os logs em arquivos de texto, bem melhores e mais flexíveis que os em XML que o próprio MSN Messenger gerava. O Plus ainda organizava tudo por pastas com mês e ano, e concedia a cada contato um arquivo único, com detalhes como dia e hora de cada conversa, momento em que o contato ficou offline e até o nick personalizado.

O que me mais me impressionou foi como eu conversava muito com as pessoas. Se você tem uma noção mínima da coisa, sabe que um arquivo no formato txt consome pouquíssimo espaço em disco. Este texto, por exemplo, até agora ocuparia 8,57 KB em um txt, salvo pelo Bloco de Notas. Só em julho de 2004 eu conversei 249 KB com 28 pessoas. Em abril de 2005 foram 97 pessoas com quem troquei pelo menos um “Oi”, mas provavelmente mais que isso porque acumulamos, juntos, 1,26 MB. Ao todo, entre julho de 2004 e junho de 2009, são 61,8 MB de conversas2.

Eu não tenho parâmetro, mas tenho a forte sensação de que, hoje, “falo” muito menos. Há mais meios (WhatsApp, Facebook, Skype), mas está todo mundo tão próximo, tão assustadoramente perto que a barreira psicológica em surgir do nada, sem motivo algum na caixinha de bate-papo do Facebook e dizer um “Oi!” se instaurou com força. Um tema já discutido aqui.

Entrando e saindo dessas pastas foi impossível não reparar no tanto de gente que, em algum ponto do passado, parece ter sido importante. Ao pedir ao Windows Explorer para listar os arquivos por ordem de tamanho, vi e-mails de quem que há muito perdi contato no topo da lista, entre os arquivos mais pesados. Também vi outros que ainda estão na minha lista de amigos no Facebook, mas com quem não converso, pessoalmente ou pela Internet, faz um bom tempo.

Claro, alguns amigos de hoje apareceram ali e é gente que, se não falo mais com a mesma frequência via Internet, considero tanto ou mais que nesse tempo de MSN. Mas é sintomático o tanto que a minha comunicação via Internet mudou em todos esses anos, migrando de diálogos em apps de bate-papo para, em sua maioria, monólogos no Twitter. E aquelas pessoas ali de quem nem me lembrava, mas com quem conversava tanto? Por onde anda o Raul do blog sobre Windows? A Karinassa? E a Dani “caindo_sem_parar”?

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As pastas seguintes são de fotos e vídeos. Mesmo para mim, que gosto muito de ler, o impacto do visual é bastante forte, talvez mais do que ler conversas antigas. Só que a essa sensação nós já estamos habituados — antes das digitais existiam as fotos analógicas e, embora mais caras e escassas, elas sempre estiveram presentes.

De qualquer forma, ver fotografias de dois, cinco, dez anos atrás foi outra viagem legal demais. Com barba e sem barba, cabelo curto, raspado, normal. Olheiras sempre presentes, roupas… estranhas, em alguns pontos. Isso, ficando só em mim. Mais importante, talvez, são as lembranças dos outros que essas fotos e vídeos trouxeram.

Pessoinhas que nasceram nesse intervalo e, por isso, cresceram e mudaram bastante em tão pouco tempo, por exemplo, são as mais curiosas. Parece que faz tanto tempo, mas na real foi há três, quatro anos que elas estavam aprendendo a andar e a dizer suas primeiras palavras.

Na outra ponta, lembranças de quem já se foi. Foi estranho, um misto de saudade e conforto, rever aquelas pessoas ali, vivas, mas certo de que elas ficarão daquele jeito eternamente. Não contarão novas histórias, nem participarão delas. Viraram memórias. Da minha avó materna, uma forte voltou quando vi um vídeo de uma de suas netas abrindo presentes na festa do seu primeiro aniversário. Saber, hoje, que aquele foi um dos últimos contatos entre duas pessoas em fases diametralmente opostas da vida, uma começando, outra perto do fim, é bem triste em retrospecto. Para a criança, nossa avó sempre será uma lembrança de fotos e vídeos como esse.

Enquanto não inventam uma máquina do tempo, isso é o mais próximo que temos de voltar ao passado. E por mais limitada que seja essa viagem, ou talvez por isso, ela é magnífica.

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O resto do HD externo está cheio de instaladores, músicas e backups de backups. Nada muito relevante.

Daqui a dez anos é bem provável que esses arquivos ainda estejam comigo. Não nesse mesmo HD, ele não deve aguentar tanto tempo; mas com uma combinação de locais onde guardo as fotos, conversas e arquivos, a segurança deles estará garantida. É aquele velho papo de administradores de empresas: nunca coloque todos os ovos na mesma cesta. No nosso caso, em que os ovos podem ser replicados infinitamente, guardá-los em apenas um local é uma negligência injustificável.

O hardware mudará, os serviços online onde guardo as cópias, talvez. Alguns formatos de arquivo não devem sofrer alterações, mas até a isso é preciso estar atento. Meus diários, por exemplo. Escrevo no Word e os criptografo com o TrueCrypt. Tudo o que escrevi neles antes de 2007 está no formato doc, um que a futura nova versão touch gratuita do Word, que deve sair junto com o Windows 10, não abre mais. Agora, só a docx, baseada no OpenXML e que estreou no Word 2007. Sem falar no TrueCrypt, que foi descontinuado.

Todo esse esforço tem um limite. Se tudo correr bem e eu morrer velhinho, com uns 80, 90 anos, talvez (e se eu os tiver) meus descendentes quererão preservar algumas das minhas velharias. Esse desejo deve cessar ali, já que meus hipotéticos netos provavelmente não terão o mesmo interesse que meus improváveis filhos. E eu não os culpo, afinal a eles serei quase um estranho.

Nesse aspecto o digital se assemelha muito ao analógico, mas por motivos diferentes. Fotos antigas impressas no papel desbotam, se deterioram, queimam, molham, ocupam espaço físico, são esquecidas. As digitais? São perdidas em um HD defeituoso, um backup que deixou de ser feito, um Orkut que saiu do ar. Ou apenas apagadas pela irrelevância.

Enquanto estamos aqui, porém, esses bits que nas telas se transformam em palavras e imagens estão entre as coisas mais valiosas que possuímos. São um passaporte barato para reviver bons momentos, ressuscitar quem já morreu, recontar por outro ângulo a nossa própria história. No fim, acho que vale aquele fim de semana perdido arrumando o backup das fotos.